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Seção de Biografias e textos Biográficos

Eu e o grande Pântano

Laureano da Rosa Secundo

- Vô! Vamos fazer um site sobre o grande pântano...
Gritou Igor, meu neto de sete anos, no meio de uma das muitas histórias que eu contava para ele. Seu irmão mais velho ouvia sem muito interesse pois estava com os olhos vidrados no computador. Demonstrei um misto de curiosidade e interesse que só os avós têm e perguntei:
- Como é que faz isso?
Do alto da sabedoria dos seus 10 anos o mais velho, Fernando, logo se antecipou.
- É pra gente colocar na internet vô. A gente ta aprendendo na escola. Eu mesmo já aprendi o HTML e já construí uma página
Como fui educado no século XX aquilo me soou estranho, mas diante do entusiasmo dos meus dois parceiros de estórias acabei cedendo, mas logo tratei de me proteger.
- Eu forneço as estórias e vocês fazem o resto...
Fernandinho, que já tinha perdido o interesse pelas minhas narrativas, foi tomado por um súbito entusiasmo e, como pré-adolescente, tratou de formar uma turma para entrar no projeto:
- Vou chamar a Patrícia e o Lucas que sabem muito de animação...
Igor pressentindo que começava a perder espaço para os maiores foi tratando de reclamar...
- E eu?
No papel político de avô tive que pensar rápido e disse:
- Você vai ser o encarregado de compilar as estórias que nós já contamos...
Sem saber se ficava alegre ou decepcionado ele logo foi perguntando...
- Que isso?
Resumi pra ele...
- Você vai ser o responsável por lembrar todas as histórias que nós já contamos e como você já saber ler e escrever vai fazer uma lista com todas e depois todos nós votamos pra escolher qual vamos colocar na página. A sua função será uma das mais importantes...

Desde então estamos ocupando nossos finais de semana neste projeto eu conto histórias muito antigas, meus netos e seus amigos estão criando um Pantanal virtual.
Isso constantemente me faz pensar que o Pantanal deve continuar a fazer parte da vida da minha família por muito tempo.
Trata-se de uma relação interminável de personagens que percorrem a minha mente. A grande cobra grande, com dizia o amigo do meu pai, o pássaro das grandes assas, o peixe dourado cujo brilho iluminava as águas dos rios do pântano nas noites de tempestade, a bravura da onça pintada, a velocidade do veado, o boi e o cavalo que se debandaram das comitivas e se embrenharam na mata e tantas outras.
Há também as histórias de fantasmas de soldados que lutaram na guerra do Paraguai e de revolucionários, que derrotados em suas lutas na terras onde nasceram foram obrigadas a sumir por estas regiões que antes eram consideradas como o fim do mundo.
O grande pântano. Era assim que um amigo do meu pai se referia ao pantanal quando nos visitava. Sentado na varanda da minha casa ele contava histórias que vêm da época em que a família tinha fazenda no pantanal. Devido a minha natureza urbana, devo confessar que nunca estive no Pantanal, mas o grande mar de Xaraés, como é chamado nas lendas pantaneiras, tem uma infinidade de personagens com estórias fantásticas que habitam um mundo imaginário formado em minha mente a partir de estórias que ouvi de pessoas que passaram pela minha vida.
Com o tempo posso dizer que as estórias se misturam, alguns casos se fundiram em outros gerando novas versões que devem ser ampliadas agora que conto para os meus netos.
Este amigo da família que sempre contava histórias dizia que o pai dele, nas épocas de cheia, costumava ficar sentado na varanda da fazenda assistindo as águas dos rio Paraguai chegarem até o primeiro degrau da escada. Aquilo produzia imagens fantásticas em minha mente e, por certo, devem provocar o mesmo efeito nos meus netos quando eu conto para eles.
Ele contava que o mar de Xaraés tinha protetores que hoje meus netos chamam de guardiões. Eles são os responsáveis por receber as águas que carregam os espíritos de todas as coisas.
O Pantanal é a parada final das águas, para lá elas correm e são tragadas para serem devolvidas puras nas fontes que geram rios, lagos e lagoas, etc..
Dizia ele sempre
Um descendente de índios teria dito para ele que o grande pântano um dia foi mar, era o reino das águas, mas os espíritos maus tomaram o poder e só causaram destruição Desde então o grande espírito determinou a retirada de todas águas da região e, como punição, para que pudessem se redimir teriam que percorrer e limpar o mundo e só retornar de sete em sete anos depois de percorrer o mundo.
A água não limpa apenas o corpo das pessoas, mas também a alma das pessoas.
Esta era outra afirmação dele para justificar sua teoria no fato do líquido ser usado por praticamente todas as religiões.
São os grandes espíritos que habitam as grandes correntezas que fazem surgir as mais variadas formas de vida.
Esta frase eu ouvi muitas vezes especialmente quando ele falava das longas noites com o pantanal cheio.
Acho que no meu imaginário consigo entrar nos devaneios dos personagens, realizo meus sonhos e acredito que torno realidade o pensamento das pessoas que contaram estas estórias.
Nas muitas conversas com meus netos sobre internet aprendi o que é chat, já freqüento algumas salas de bate-papo. Converso com algumas pessoas que já acessam o site e sinto um grande interesse nestas velhas estórias contadas por peões, andarilhos. Enfim, por pessoas simples. Ao mesmo tempo em que fico fascinado pelo admirável mundo novo da internet também consigo fascinar pessoas com as lendas do grande pântano..
Acho que essa é a grande moral da estória. Tudo só é fantástico até o momento em que sai do imaginário de um homem e vira realidade, aí perde parte da graça. A própria internet era algo inacreditável, só possível nos filmes de 007 e hoje é real. Porque as histórias que ouvi ao longo da minha vida não podem ter sido realidade num remoto passado.


Laureano da Rosa Secundo, jornalista há 27 anos em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Sempre teve um grande interesse por escrever e já têm algumas poesias publicadas em coletâneas realizadas em Campo grande, escreveu letras de músicas e uma peça de teatro que venceu um festival universitário de teatro. Neste ano de 2004 este conto foi selecionado para ser publicado na Antologia de Contos de Autores Contemporâneos da Câmara Brasileira de Jovens Escritores. Agora se dedica a um trabalho de pesquisa sobre história e folclore da região pantaneira e isso já começou a render alguns contos e obras de ficção.

e-mail: laureanosecundo@ibest.com.br

Página Publicada em 03/dez/2004