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Casa da Cultura - Literatura - Contos

A cachaça do vô

Mão Branca

Eu tava tomando um trago quando o telefone tocou.

- Quando é que você vai nos ensinar a andar de moto? - Disse meu cunhado.

- Leo? Como é?

- Quando é que você vai nos ensinar a andar de moto, pô? Eu, o Juba, o Arlindo, o Pina, o Luca e o seu pai estamos aqui querendo saber quando é que você vai nos ensinar a andar de moto!

- Oras, quando vocês quiserem!

- Não vem com essa! Tem que marcar o dia! Fala com o Juba. - Meu irmão pegou o telefone no outro lado da linha. - Então? Quando?

- Que tal nesse sábado?

- Nesse sábado não dá pois eu vou fazer uma tatuagem. Aliás, vamos fazer juntos uma tatuagem!

- De tarde, no sábado, eu ensino a vocês. De manhã a tatuagem e de tarde as aulas de moto.

- Combinado!

- Combinado!

- Você sabe que dia é hoje?

Passei rapidamente os dias importantes da vida na cabeça e lembrei do dia 15 de fevereiro: aniversário do Vô Alfredo. Em sua identidade está grafado o dia 15 de março, pois o bisavô teve preguiça de registrá-lo logo que nasceu.

- Putz, então é por isso que tô aqui tomando um trago! Tô brindando ao vô Alfredo!

- Brinde novamente! - Pediu o Giuliano.

- Um brinde ao vô Alfredo.

- Tim-tim. - Respondeu.

Enchi o copo de cachaça. Uma que o tio Estevam me deu. Bebi. Uma delícia. Comi um pedaço de queijo. Bonzinho apenas. Bons mesmos eram os que o vô trazia de Caldas Novas.

 

Certo dia o vô trouxe também uma cachaça. Meu pai bebeu um gole e me deu outro. Achei uma merda.

- Muito boa, Alfredo. - Disse meu pai. O vô saiu todo satisfeito para a churraqueira.

- Pô, eu achei . . .

- Psit. - Cutucou-me meu pai. - Boa mesmo, Alfredo!

Olhei para o meu pai e ele piscou para mim. Entendi! Havíamos fechado um acordo: gostar da cachaça horrorosa do vô Alfredo.

O vô ficou tão satisfeito que começou a trazer garrafas maiores.

- Não precisa, Alfredo. - Dizia meu pai.

- Precisa. - Respondia meu avô. - Como não? Você gostou tanto!

Nossa tranqüilidade acabou. Tínhamos que nos desfazer das garrafas, cada vez mais freqüentes, da cachaça do vô. Meu pai presenteava os amigos.

- Não, João, não quero mais essa cachaça do seu sogro. - Diziam alguns. - É muito ruim.

Até eu e meus amigos ganhávamos garrafas.

- Mas você não me deixa beber sozinho?

- Não importa! Se livra dessa cachaça.

O pior era que meu pai tinha que bebê-la sempre que o vô aparecia em casa. E o vô vivia lá em casa.

- Não vai bebericar a cachaça hoje?

- Hoje não, Alfredo, meu fígado tá acabado! - Começou a desculpar-se meu pai.

Certo dia o vô entrou na despensa para pegar alguma coisa. Viu quatro garrafas de sua cachaça escondidos debaixo de uma prateleira.

- Ué? Por que as cachaças estão aqui escondidas?

- É porque senão o todo mundo bebe e o João fica sem nada. - Salvei a honra do meu pai jogando-o de vez ao fogo.

Meu avô começou a trazer o diabo da cachaça em garrafões de cinco litros.

- Assim vou virar um alcoólatra, Alfredo! - Estava desesperado o meu pai.

Combinamos de minha mãe pedir ao vô que diminuísse as cachaças, com a desculpa que o João estava bebendo demais.

- Claro, minha filha. Não vou trazer mais nenhuma. Onde já se viu beber tanto? - Concordou o vô. Contei o resultado da conversa ao meu pai, que sentiu-se aliviado.

Um dia meu pai chegou para almoçar com uma garrafa de cachaça do vô nas mãos.

- Ele foi ao meu serviço e me deu a cachaça. Disse que a Tereza não poderia saber. Ela está me controlando! - Disse, desiludido.

Desistimos de lutar contra os presentes do vô. Meu pai recebia as cachaças com carinho e as usava até para desinfetar o chão do canil. Nem os cachorros gostavam da cachaça.

Um dia, enquanto eu lutava bravamente contra umas formigas que insistiam em comer as folhas da laranjeira no quintal, meu avô chegou-se para mim e confidenciou:

- Esse teu pai é doido.

- Por que, vô?

- Aquela cachaça que eu trago para ele é uma merda.

- Como é?

- É, a cachaça é uma merda.

- Você acha?

- Claro. Horrível. Eu as ganho de um amigo em Caldas e as dou para seu pai. - Pensou um pouco e comentou. - Não sei o que faria com elas se o seu pai não gostasse tanto.

- É, esse João é doido.

Nunca contei esse diálogo para meu pai. Nem precisava, afinal ele recebia as cachaças só para alegrar o vô.

Um dia as cachaças pararam de vir.

- O produtor parou de fabricar. - Disse o vô. - Parece que tinha pouca saída.

- É mesmo? Que coisa. - Limitou-se a dizer meu pai, temeroso que meu avô cismasse em trazer alguma outra pérola etílica de presente.

Dias atrás visitei meus pais e vi que ainda há uma garrafa da horrível cachaça do vô Alfredo guardada na despensa. Peguei a garrafa e a abri. Cheirei o buquê. A mesma porcaria de anos atrás. Guardei-a de volta.

 

- Vocês ligaram para me lembrar que hoje é o aniversário do vô, não é?

- Não, até que não.

- Nem lembraram do aniversário do vô?

- Claro que lembramos. Estamos até bebendo uma cachaça que ele trouxe de Caldas pro João.

- E...

- Pô, é uma merda essa cachaça!


O autor, Mão Branca é o pseudônimo de um escritor . . .que mora em Brasília, tem mais de 30 anos, conhece profundamente a perversidade humana e tenta de todas as maneiras ver-se livre das amarras da própria limitação. Gosta de Charles Bukowski e de Wander Wildner. Mão Branca vive tomando umas nos bares da cidade sempre à paisana. Gosta de coisas simples mas limpinhas. Detesta politicagem e vive mandando tudo à merda. Gosta de futebol, mulheres, roquenrou e cerveja. Acha a cachaça a bebida dos deuses. A coisa que Mão Branca mais aprecia é receber emails falando sobre literatura. Mande seus escritos para ele.
Quer realmente saber quem é Mão Branca? Veja esta mão! Imprima a figura. Procure pela cidade seu dono. Em tempo: ele nunca vai estar em bares que cobram couvert nem onde o expulsem por entrar de bermuda e chinelo.

Contatos: maobranca@gmail.com

Página Publicada em 20/09/2006