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Seção de Crônicas da Casa da Cultura

Lili erva-doce

Otávio Nunes

Da primeira vez que Lílian entrou aqui, na padaria, notei que era diferente das demais meninas que trabalham nesta rua. Ela é educada, raramente fala palavrões, não fuma, é cheirosa e seus cabelos estão sempre molhados como se saísse do banho a cada minuto. Suas roupas, embora das mais baratas, se amoldam perfeitamente ao seu corpo, como a casca na banana.

Quase todas as noites Lili chega ao balcão e me pede média e pão com manteiga. Disfarçadamente, reparo em suas unhas esmaltadas de vermelho, penso em seus seios tão convidativos que só falta ela estender um tapete vermelho no decote, seus lábios carnudos feito gomos de mexerica e adoro até seu nariz que brilha sob a luz da lâmpada. Depois sai, rebolando espontaneamente com sua bolsa preta. Acredito que deva ter vários clientes entre os homens que param seus carros na calçada à procura de bons programas noturnos.  

Conversamos pouco. Aliás, não sou de muito assunto. Minha vida é como um trem, sempre no mesmo trilho, mesma paisagem, iguais estações. Confesso, porém, que a chegada de Lili encharcou minhas noites de alegria. É bom ver seu sorriso, como criança brincando numa manhã de domingo. Sem que meu patrão veja, às vezes nem cobro o que ela consome no balcão.

Fiquei sabendo, por uma das garotas, que Lili veio há pouco do interior, brigada com os pais. Nesta cidade enorme, o único emprego que arrumou foi este, que não exige carteira assinada ou experiência anterior, somente o corpo e a coragem.

Um dia ela irá embora, como todas as outras. Tenho certeza. Por ora, admiro seu vulto alumiar a rua, refletir o brilho da lua e deixar um aroma de erva-doce no ar. Enquanto isso, eu vou servindo café e cigarro para as meninas, cachaça para os bêbados e um cálice de sonho para mim mesmo.

 


O autor, Otávio Nunes, é jornalista em São Paulo, trabalha como repórter no Diário Oficial do Estado. Nasceu no Paraná em 1956, mas está em São Paulo desde seus sete anos. Como jornalista já passou por revistas técnicas, assessorias de imprensa, Diário Popular (atual Diário de S. Paulo). Escreve contos desde seus 25 anos, antes mesmo de estudar jornalismo. De alguns anos para cá, especializou-se em pequenas histórias, de uma a três laudas. Segundo ele: "Talvez por ser jornalista, aprecio texto que seja entendível. Acho que o escritor escreve para alguém, não para si mesmo ou meia dúzia de iniciados."

Contatos: otanunes@gmail.com

Página Publicada em 23/10/2006