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Natal no Olimpo

Rogério Amaral de Vasconcellos

 

- Como podemos saber que é Natal, se essa merda aqui não têm calendário, e mesmo que tivesse não seria nem um pouco confiável?

A velha questão novamente.

Quem falara fôra Brasil, e a merda só podia ser a Nave, nossa prisão espaço-tempo-dimensional. O colorido do linguajar dele podia divertir - ou chocar - os menos avisados. Para mim, depois de anos (séculos?) de convívio, revelava outras intenções. Aquele brasileiro, Benedicto Raimundo Alves da Silva, de cujas iniciais derivava a peculiar alcunha, era ardiloso, e podia muito bem saber mais coisas do que revelava. Não gostaria de tê-lo como inimigo...

Melhor mesmo é disfarçar, mastigar umas rochas e ganhar tempo, como estou fazendo agora. A propósito, não podia me recriminar, pois aprendera isso com ele. Também tinha muito a enquadrar, antes de responder. Se é que responderia.

***

As elevações se sucediam até onde a vista alcançava e podíamos vê-las aos milhares, indistintas em suas origens, do alto daquela privilegiada visagem, na maior de todas, no local por nós apelidado de Monte Olimpo.

A falta de cumes nevados decerto causava estranheza, como os animais e vegetação que viviam neste mundo bizarro, ao qual voltava pela quarta vez, em mais uma expedição que outros poderiam rotular com outro nome: obsessão.

Não haviam planícies, só fossos profundos, indevassáveis, lapidados em ângulos malucos, com muralhas de todas as cores e formatos, contendo, em vários níveis de altitude, verdadeiros terraços suspensos sobre o vazio, como naquele local onde resolvêramos fazer uma pausa em nossa infindável escalada.

Felizmente o aclive não era dos mais íngremes e acidentado, com largos degraus que apontavam para uma origem artificial, dispensando o uso de cordas ou ganchos. Não tinha vocação para cabrito montês, logo, só agradecia por isso.

Os ventos furiosos, que uivavam e pareciam vozes em uma ária perene, via de regra ficavam restritos à parte baixa de onde chegáramos, dois dias atrás. O que não diminuía nosso esforço. Afinal, foram 12.000m até aqui, e sabe-se lá quantos mais até o ápice, desde nossa saída do subportal, situado acima de um colchão de nuvens azuis que enfeitavam várias daquelas gigantescas formações rochosas. Das vezes anteriores nunca fôramos tão longe. Os marcos ainda estavam lá e atestavam isso.

Tinha sido uma subida e tanto. Como arqueólogo, tive pouquíssimas chances de atuar, mas certamente levaria comigo outros dados que aumentaria, em muito, o mapeamento do Olimpo.

Deveríamos agradecer a nossos Nômades - essas criaturas que nos usam como hospedeiros, mas são discretas o suficiente para que quase percamos a noção de as termos entranhadas - pois toda sensação de fadiga nunca atingia um nível desconfortável. Por isso as pausas periódicas eram fundamentais para a manutenção dessa jornada.

Desde a chegada, vínhamos seguindo a pista que o casulo - a excrescência óssea verificada na grande maioria dos abduzidos de nosso grupo - nos indicava, montanha acima. Dois dias caminhando com tranqüilidade e muitas paradas, onde o silêncio e momento para reflexões se misturavam com acalorados debates, às vezes surgidos do nada. Dias diferentes daqueles do ciclo de 24h comum à Terra. Dias sob uma penumbra constante e deprimente.

Além de Brasil - que deixara de resmungar e divertia-se jogando folhas de trepadeira que voavam, com uma sucessão de piruetas impressionantes, voluteando no ar, caindo rumo ao infinito - nossa pequena expedição exploratória era constituída por Ogundelê Olissassa, conhecido também por Zumbi, um dos heróis de um lugar chamado Palmares, e eu, completando a equipe.

Tínhamos reservas de tudo que fosse necessário para o bom desempenho da tarefa, e contávamos com várias outras vantagens: o clima era ameno, tendendo ao frio, porém mantendo-se num nível bastante razoável, por mais que nossa escalada tentasse atingir o topo do mundo, onde parecia se situar um megaportal... Não esquecemos de trazer cubos de sal e havia, em certos locais, aquele extraordinário afloramento rochoso, parecendo esponjas petrificadas, servindo-nos de um suculento maná, um tipo crocante e energético de biscoito, que Raimundo, aquele que a tudo batizava, chamava de biscoitone. Para variar ainda mais o nosso farnel, na tarde de ontem, com uma pedrada certeira, Zumbi tinha abatido um galináceo de carne escura, porém suculenta, e os pedaços da carcaça, assado dentro do barro em uma das fontes termais, viraram os nuggets que estavam divididos entre nós. As trepadeiras-de-água, enraizadas em veios profundos, impossíveis de serem arrancadas, saciavam nossa sede como bicas a céu aberto, oferecendo uma qualidade tão pura de água que não pesava em nossos corpos, com microbolhas que intensificavam a impressão de frescor.

***

O eco da pergunta de Brasil ainda não tinha se dissipado de todo quando falei aquilo que tinha sido objeto de outras conversas, naquela nova incursão ao cume do Olimpo (que alguns pensavam ser a morada do próprio Zelador, o responsável por nosso cativeiro):

- Desde o início de nossa abdução adotamos uma forma de contagem de tempo que é própria de nosso mundo de origem. Como somos a maioria e os alienígenas do grupo não se importaram, é o que está prevalecendo, amigo - desviei o olhar para onde Olissassa se mantinha fixo, contemplando o céu que não era céu, não o clássico, mais um gramado sem fim, de onde emanava o estranho tom nublado, cor de jade, que a tudo permeava.

Em vista do silêncio, tão invulgar naquele que sempre tinha um comentário a tecer, concluí:

- Somos criaturas de épocas e culturas distintas, e para não enlouquecermos criou-se essa política do tempo. Zumbi é do século XVII, eu do XIX e você do XXI. Precisamos ter algo em comum.

- E temos: estamos todos fodidos - ele parou com o lançamento de folhas e resolveu me encarar - Andreas, quais são suas verdadeiras intenções? Se não soubesse que supostamente iremos encontrar um megaportal no ápice desse Everest agigantado, suspeitaria que seu lado ateu nos arrastou até aqui para fugir à confraternização que deve estar ocorrendo na dimensão de onde viemos...

Deixei que aquela suspeita se diluísse por si só. Claro que poderia ter acrescentado que estavam ali o crente, o ateu e o indeciso. Três homens, mais de três séculos de história. Passado e futuro não existiam neste lugar, fora tudo apagado, assim como nossas antigas vidas. A convivência nos fazia cada dia mais iguais, compartilhando raivas e frustrações, inclusive pesadelos ou esperanças. Seria isso que o Zelador, o responsável por nosso cativeiro, pretendia ou este estaria em um patamar tão elevado que tudo o mais teria a gerência do acaso? Provavelmente a resposta estava em outro lugar.

Passos felinos se aproximaram, o tok-tok de um cajado traindo o vulto maciço de Zumbi, resolvido a interferir na conversa.

- Oxalá o Bajigan não esteja por trás de meus atos, a idéia não foi dele e sim minha, Raimundo. Certa ocasião tive uma experiência não muito clara em uma de minhas ausências(*). Mas sinto que algo se perdeu, um dado importante, impressão relatada por Nehud e Dimitri, com os quais partilhei daquela missão.

- Prezo seus instintos, Zumbi. Já nos safaram de várias enrascadas. Porém ainda não consegui alcançar seus motivos. Qual a relação com o que fazemos aqui e essa "informação perdida"? Por que não estamos na base, enchendo a pança de lagarto recheado e tomando um porre de licor de xacu, ouvindo a péssima imitação de Dimitri, travestido de Papai Noel?!

- Não faça perguntas difíceis - resolvi me intrometer, pois vira o olhar perdido do negro de cabelo e barba acinzentados e constituição maciça, tentando extrair da cabeça uma resposta que não vinha, algo que desaparecera e mesmo assim mantinha intactas outras lembranças daquela missão em que todos fôramos participados, nos relatos que eram feitos, como era costume, a volta de uma fogueira, no retorno de cada missão. Resolvi espicaçá-lo um pouco, para checar se a mente de Brasil se mantinha afiada: - O Zelador tenta nos levar à loucura, e nós tentamos evitar que isso aconteça.

- Por acaso trepar num pedregulho desses parece algo são? Fomos mais longe do que qualquer outro, mas valerá a pena chegar no topo e descobrir que é mais um ninho de rochas que levam a outras rochas, e mais lugares estranhos?

- Sabe a resposta melhor do que eu, amigo. Se não acreditasse que pode encontrar algo diferente, nunca teria se unido à expedição. Você é muito oportunista para ficar de fora.

Perante meu comentário, ele riu, e acabamos todos rindo junto. Quando terminou, resolvi insistir um pouco mais:

- Estou aqui em busca de conhecimento. É verdade que quero distância dessa alegoria, da estúpida religiosidade com que tratam a tudo, em especial o Natal. Me pareceu a melhor oportunidade para tentar, mais uma vez, atingir o cume. Faz parte de minha natureza. Inclusive iria fazê-lo sozinho, mas Olissassa insistiu em vir junto, de expiar algum de seus famosos eguns, desanuviar a mente, o que acho válido, pois o pior inimigo que temos são nossos próprios fantasmas. O que me lembra uma outra questão...

Fiz uma pausa, olhando para a próxima barreira de nuvens de contornos definidos que havia acima de nossas cabeças, separando-nos do destino.

- Desembucha, homem. Cospe. Quer insistir no motivo de eu estar aqui, não é?

- Confesso que estou curioso.

- Pois eu não - Zumbi sentou-se numa rocha e nos surpreendeu ao responder: - Amigo Brasil esconde uma parte de si. Há Exu Bara, o rei do corpo, nele. A cuia, o conjunto dos sete orixás que regem suas qualidades, têm o exu como dono do ori, que vocês já sabem que é o principal orixá que o governa. Mesmo gostando do prazer, este escoa com a mesma facilidade que surge. Deve ter visto muitos Natais e trocaria isso facilmente por algo... diferente. Por isso ele veio. Mais importante é estar junto, descobrir o que há... além.

Apontando para o alto, o enorme negro, apoiado em seu cajado que pensávamos ser apenas decorativo, deu-nos as costas e iniciou a parte mais difícil da jornada, aquela que nossos casulos e o insistente sinal de localização acusavam, mostrando que o Olimpo tinha um fim, mas se haveria respostas para cada um de nós essa era uma questão a ser verificada... pessoalmente.

Fomos atrás do gigante, que avançava resolutamente pelos degraus de rocha escavada, uma construção imemorial, talvez trilhada por seres além de qualquer imaginação.

Chegara a nossa vez de tentar encarar o Olimpo do cume. Porém suspeitava que não seria esta a derradeira tentativa. Deixei minhas anotações mentais de lado e meus passos começaram a acrescentar ou diminuir a distância entre eu e a verdade.

 

(*) Ver Três Reis Magos, livro 3 da Coleção Vaca Profana, disponível em www.slev.org . Cada um dos livros da coleção Nave Profana (no momento com praticamente 30 exemplares editados), mesmo considerando o aspecto serial, pode ser lido de forma isolada, pois acompanha glossário e texto explicativo de introdução.


O Autor:

é escritor de FC, natural do Rio de Janeiro. Publicou Campus de Guerra (editora Writers, 1999), de onde o conto "Le Pranto" é derivado. Participou de diversas antologias. É co-editor da Revista Scarium e diretor do Projeto Editorial Alternativo SLEV

O Conto:

"Natal no Olimpo" foi escrito tomando por base o universo da "Nave Profana", que gerou a coleção de mesmo nome, no site do projeto Slev: www.slev.org.

Contatos: rogamvas@radnet.com.br
Projeto Editorial Alternativo: SLEV