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Artigo de André Masini publicado no Jornal O Paraná em 22/Out/2003


A GRAMÁTICA E O FUTEBOL


Muitos anos atrás, em meus idos tempos de menino, eu sonhava – como sonhavam quase todos os meninos – em ser craque de futebol.

No meu caso, porém, era um sonho sem esperança. Pois além de grosso – grosso mesmo, desses de dar medo – eu do jogo não entendia nada: nem da tática, nem das regras, nem de nada.

O sonho surgira assim de forma quase etérea, coisa dos ares brasileiros, ou talvez influência de meu tio Evelcor, corinthiano roxo, que certa vez, quando eu tinha 7 anos, levou-me ao Morumbi pra ver um Corinthians e Palmeiras. Da partida pouco me lembro, mas a festa da torcida corinthiana saudando o time que entrava em campo... isso eu jamais esquecerei.

Dali em diante, tornei-me fanático. Comecei a passar as tardes de domingo sozinho no quintal, acompanhado os jogos do Corinthians pelo radinho e chutando uma velha bola de capotão por cima do varal (barreira do time inimigo), fingindo ser o Rivelino.

A emoção que vinha do rádio era indescritível... Não que eu entendesse algo do que estivesse sendo narrado ou do que de fato acontecia no jogo. Não. Eu nem sabia o que era "meia-cancha", ou "intermediária", ou "impedimento"... mas a voz do narrador exprimia uma intensidade tão dramática... uma importância tão grandiosa... que parecia retratar uma batalha épica e sobrenatural, uma batalha mítica entre o bem (o Corinthians) e o mal, travada em alturas gloriosas muito acima de nossa realidade terrena e que ficaria gravada eternamente nas imensidões infinitas.

Nunca haverá no mundo real um jogo que se compare às imagens daqueles jogos, tecidas no ar pelo radinho de pilha.

Mas – à parte o rádio – meu verdadeiro sonho, que era jogar de verdade, esse eu nunca cheguei a realizar; e não foi por falta de insistência.

Incontáveis vezes eu me apresentei, cheio de disposição, em times de rua ou da escola. Mas bastavam umas poucas correrias pelo meio de campo e ataque, que logo minhas deficiências ficavam óbvias... e mandavam-me para a zaga.

E lá ia eu pra defesa sem me queixar; mas também lá me faltavam noções de colocação e marcação. Eu corria pra bola... e o centroavante recebia livre nas minhas costas...

Da zaga, eu ia pro gol, e mesmo lá eu continuava feliz. Esforçava-me e atirava-me como um camicase. Mas também lá me faltava técnica: largava bolas, não sabia sair... e acabavam arranjando um goleiro melhor.

De tudo isso, minha única queixa é ter esperado, ano após ano, que algum professor de educação física na escola me ensinasse alguma coisa (talvez os fundamentos básicos do jogo: chutar, matar a bola, colocar-me em campo)... Eu bem sabia que nunca seria nenhum Rivelino, mas queria aprender um pouco! Era frustrante ouvir de cada novo professor, ano após ano, sempre a mesma frase (com um sorriso condescendente, de quem imagina que está sendo muito bonzinho):

– Eu não vou ensinar ninguém aqui a jogar bola (como se ensinar fosse algo ofensivo). Futebol, já se nasce sabendo. Vamos jogar...

E lá ia eu, mais uma vez, a correr atrás da bola... e a dar-lhe pavorosos bicões toda a vez que a infeliz caia, por obra do acaso, na minha frente... isso quando não era a perna de algum colega...

Não. Eu não havia nascido sabendo.

No fim, felizmente, a deficiência futebolística não fez falta em minha vida, nem para meu sustento, nem para a realização de minha verdadeira vocação, que é observar o mundo e descrevê-lo. Mas agradeço aos céus todos os dias o fato de meus professores de português não terem sido como os de educação física.

Também em português eu tive minhas dificuldades, a começar pela dislexia. Mas meus mestres não foram condescendentes com minha ignorância, nem supuseram que os alunos nascem sabendo... Eles ensinaram... e depois cobraram duramente. Foi graças a isso que eu aprendi.

Por isso é com tristeza que observo hoje a moda de se substituir o ensino da gramática por "interpretações de texto".

Tais "interpretações " são como as peladas de minhas aulas de educação física, inúteis para todos, e frustrantes para quem não trouxe de casa a arte da bola ou da gramática.

Oferecer textos sem antes ensinar gramática faz lembrar meus professores de educação física: "Eu não preciso ensinar ninguém... Futebol, já se nasce sabendo..."

A gramática, como o futebol, é algo concreto, que pode ser aprendido e ensinado. Mas as conseqüências da falta dela são muito mais graves para a vida da pessoa, e para o país.

Nota do Autor: por motivo de saúde estarei temporariamente afastado de minha coluna semanal. retornarei oportunamente

André C S Masini

O autor é Auditor Fiscal da Receita Federal e Escritor

 

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