Artigos publicados no Jornal O Paraná Fechar Página Principal

ANJOS, DEMÔNIOS E ABISMOS

O ser humano sempre sofreu de uma perigosa atração pelo absoluto, por “seguir uma bandeira” (como dizia Dante) e ver nela todo bem e toda a verdade. Na história, a lista de fanatismos parece infinita: racismo, intolerância religiosa, nacionalismo, sectarismo político... E essa mesma atração pode ser vista hoje, à nossa volta, ou em nós mesmos: Qual de nós não possui suas verdades inquestionáveis, que mais parecem tábuas de salvação boiando em um oceano revolto... oásis de ordem em um universo de caos?

A vida é cheia de incertezas e ameaças. Todos temos nossos medos, angústias, frustrações e dores, que muitas vezes são maiores do que podemos suportar. E é por aí que entra em cena o bálsamo para todos esses males: o perfeito, o ideal, a certeza, o definitivo... a onipotência... a obsessão.

Estas linhas não pretendem a tolice de fazer reparos à natureza humana; pretendem apenas chamar atenção para o perigo que corremos ao escolher uma tábua para nos agarrarmos.

Tábua benigna costuma ser o sentimento religioso. Em questões transcendentais, a idéia de absoluto é - além de inofensiva - aceitável, pois a própria insignificância do homem, de sua razão e suas vaidades, diante da enormidade da natureza, da vida e da morte, a justificam.

Os problemas começam quando se tenta trazer o absoluto para nosso mundo: para a filosofia, para a ciência, para as relações com os outros, e... para a política.

Ao se adentrar as muralhas da política, é melhor deixar à porta (como também dizia Dante) qualquer esperança de certeza ou definitividade; é melhor aprender a suportar a dor da incerteza e do imperfeito; pois nesse terreno a sede do absoluto pode arrastar sociedades para abismos mais escuros que a pior das tormentas. Hitler, Stalin, Mao… foram todos arautos de soluções finais, anjos da perfeição, cada qual com seu nobre ideal...

Perfeição que hoje continua causando danos. Vejamos dois exemplos:

Alguns entre nós usam os óbvios defeitos da sociedade brasileira para argumentar que “não se pode punir duramente os crimes”. “Afinal,” ponderam, “com tantas injustiças, como se pode punir alguém?” É o argumento da perfeição. Se a sociedade não é perfeita como eu gostaria que fosse, então eu não aceito sociedade nenhuma. É uma atitude muito similar à da criança mimada que quer feijão-preto, mas que - como só tem feijão-mulato - atira o prato no chão e diz que não vai comer nada. Pois a impunidade apenas acrescenta mais uma injustiça sobre os mesmos ombros de quem já padece todas as outras.

Diante dos graves defeitos de nossa sociedade, a única atitude razoável é atacar suas causas. De que adianta fazer mixórdia com outros assuntos?

Diante de crimes, três perguntas se impõem: O ato em questão é considerado delito pelos costumes e moral da coletividade? Existe culpa do agente? A autoridade que julga é isenta, e representa a consciência e a percepção moral dessa coletividade?

Sim? Então basta. A punição é legítima.

Para os casos mais graves, como latrocínio, a maioria dos brasileiros, inclusive este que escreve, considera que a pena adequada é a pena de morte. Nenhuma outra seria proporcional ao crime cometido. (Nunca ouvi falar de ninguém, de qualquer classe social, que não tivesse repulsa ao latrocínio.) Nossa hesitação em punir adequadamente vem do fato de que nós, cidadãos comuns, não somos anjos, e os criminosos não são demônios. A única linha que separa uns de outros é o respeito, ou não, aos limites impostos pela coletividade. Aqui não existe o consolo do absoluto.

O segundo exemplo são as críticas da tendenciosa imprensa americana contra a nosso presidente Lula, por não ter apoiado uma inspeção de Direitos Humanos em Cuba.

Hipocrisias à parte, Cuba, como o Brasil, tem seus defeitos. Mas que entidade internacional existe hoje com crédito moral - e sem segundas intenções - para julgá-la?

Sanções da ONU enfraqueceram as defesas do Iraque, que foi invadido, e hoje é governado por um general americano que atira em manifestantes nas ruas. Inspeções ou sanções da ONU, hoje, contra Cuba, Coréia, Irã ou Síria, apenas ajudariam a expor esses países à ganância e brutalidade de George Bush. Esse é o mundo real.

Portanto, presidente Lula, parabéns!

Aqui na Terra não há anjos nem demônios, mas há preceitos e punições, e há tiranos gananciosos... e abismos... Fiquemos alertas.

André Carlos Salzano Masini

© Todos os textos, ilustrações e fotos apresentados neste site têm direitos reservados.
Nenhuma parte deles pode ser copiada, transmitida, gravada ou armazenada em sistemas eletrônicos, nem reproduzida por quaisquer meios sem autorização prévia e por escrito do autor, sob pena das pertinentes sanções legais.
Quando autorizada, a reprodução de qualquer desses textos, ilustrações ou fotos deverá conter referência bibliográfica, com nome do autor e da publicação.
As solicitações para a reprodução de qualquer desses textos pode ser feita através do e-mail contatos@casadacultura.org