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   CASOS CANINOS: QUATRO AMORES
 
 
 André 
                C S Masini Certa 
                vez, atendendo a um pedido de minha avó, levei uma velha 
                tia solteirona de São Paulo ao sul da Bahia. Era uma senhora 
                infeliz, que detestava pessoas, cachorros, cidades, praias e tudo 
                mais que lhe aparecesse na frente.  Quando 
                cheguei para pegá-la, ela já se pôs a protestar 
                contra a "velha carroça ridícula" (que 
                era meu carro). Só se dignou a entrar após muita 
                conversa, e depois não parou mais de reclamar por toda 
                a viagem: era o guarda que tinha cara feia, o caminhão 
                que soltava fumaça, as curvas, os buracos, e acima de tudo 
                o motorista e o carro, que juntos reuniam todos os mais detestáveis 
                defeitos que duas coisas podem ter.  Chegando 
                ao destino, eu quis aproveitar meu único dia de descanso. 
                Acordei cedo e fui para a praia sozinho. Estava feliz fazendo 
                um castelo de areia, quando ouvi a voz da tia insultando minha 
                obra...  Sentei-me 
                sobre o castelo, aborrecido. O dia parecia perdido, mas foi aí 
                que o cachorro apareceu.  Branco 
                e peludo, veio andando em minha direção; parou a 
                uns cinco metros de distância e ficou me fitando simpático. 
                Eu falei carinhosamente a ele, e ele abanou o rabo. A tia começou 
                suas imprecações contra o animal "feio e pulguento", 
                mas eu não lhe dei atenção e joguei um biscoito 
                de polvilho para o bicho. Ele andou até o biscoito, cheirou, 
                mas não comeu. Apenas deitou-se diante dele, apoiando o 
                focinho sobre as patinhas unidas, e ficou abanando o rabo e alterando 
                olhares entre minha tia e mim.  Eu 
                chamei o cachorro, mas ele lançou olhares de esguelha para 
                a velha, como se dissesse que para o lado dela não ia não.  Afastei-me 
                dela e chamei-o novamente. Ele veio. Acariciei sua cabeça, 
                e ele ficou ali, sorrindo e abanando o rabo até que...  Subitamente, 
                como se tivesse lido meus mais secretos e proibidos desejos, ele 
                saiu correndo saltitante de alegria, aproximou-se do coqueiro 
                onde minha tia apoiara suas coisas, levantou a perna e despejou 
                uma formidável quantidade de xixi amarelo sobre a bolsa 
                e o chapéu dela.  A 
                velha berrou com as mãos no rosto, como se o apocalipse 
                tivesse começado. Correu desesperada para o cãozinho, 
                que fugiu saltitante, adorando a brincadeira.  Eu 
                corri também, sem controlar as gargalhadas, e tentei ajudar 
                minha tia lavando as coisas no mar. Mas não consegui consolá-la.  Ela 
                sentou-se, com a cara fechadíssima, resmungando sem parar. 
                À certa altura, seus olhos se arregalaram, fixando algo 
                atrás de mim.  O 
                cachorro estava voltando, seguido por outros dois: uma fêmea 
                marrom que também saltitava, tão alegre quanto o 
                primeiro, e um segundo macho branco mais pacato, que apenas balançava 
                o rabo, seguindo os outros dois.  A 
                tia levantou-se e avançou para os cães aos gritos 
                e de mãos em punhos. Os dois da frente se separaram, ficando 
                um de cada lado da velha, latindo e brincando. Aí a tia 
                teve a triste idéia de ameaçar o branco com um chute. 
                Ele se esquivou e, rápido como uma gaivota em mergulho, 
                foi até o coqueiro, pegou o chapéu dela e fugiu 
                em disparada.  A 
                tia correu atrás dele, berrando a todos pulmões.  A 
                fêmea marrom imitou o branco e enfiou o focinho na bolsa, 
                pegou uma toalha e desabalou atrás do amigo. A tia parecia 
                que ia explodir de tanto berrar, mas os berros de nada adiantaram. 
                Os dois cães sumiram num matagal, e o segundo macho branco 
                os seguiu, caminhando calmamente.  Mal 
                acreditando naquilo, eu me pus a imaginar o que mais poderia acontecer.  Cerca 
                de duas horas depois surgiu à distância um senhor 
                carregando algo. Atrás dele, descaradamente, vinham os 
                três cachorros. O homem era o dono dos bichos e, quando 
                os vira chegar com as coisas, entendera que deveriam ter sido 
                tiradas de algum hóspede do hotel. Viera se desculpar, 
                trazendo o chapéu e a toalha, ambos já lavados, 
                além de alguns quitutes.  Era 
                um baiano simpático e gentilíssimo, que tratou a 
                tia com toda a atenção e, para minha enorme surpresa, 
                logo conseguiu tirar dela alguns sorrisos. Ele certamente via 
                nela coisas que eu não pudera ver...  Para 
                resumir a história, a tia acabou se casando com o homem.  Um 
                ano depois eu fui visitá-la naquela praia. Ela estava irreconhecível: 
                sorria o tempo todo, não se queixava de nada e dividia 
                alegremente sua cama de casada com os três cachorros, que 
                se alternavam em seu colo e que ao lado do marido eram os quatro 
                amores de sua vida. O autor é  Escritor, 
                Auditor Fiscal da Receita Federale Diretor Geral da Casa da Cultura.
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