MODERNIDADE (I.
MEU FOGÃO)
Antigamente - nos tempos em que transporte
significava cavalo, e iluminação significava lamparina
de óleo - a vida era muito diferente de hoje.
A fabricação de um fogão,
por exemplo, era uma tarefa impensavelmente difícil:
o ferreiro-artesão, quase sempre analfabeto, tinha que
compreender e dominar todas as etapas do processo; desde elaborar
o projeto em sua cabeça, até construir o artefato
sozinho, usando toscas ferramentas como forno de lenha, martelo,
bigorna...
Com meios tão precários,
não é à toa que os suportes para as panelas
acabassem parecendo algo assim:

Uma forma
tosca, sem qualquer estilo ou design, que servia apenas para
sustentar panelas e nada mais...
Mas há um detalhe: funcionava!
Sustentava panelas... de qualquer tipo ou formato.
Hoje tudo é completamente diferente.
No mundo globalizado, o projeto de um fogão é
feito por dezenas de profissionais especializados e pós-graduados
nas mais diversas áreas: marketing, design, engenharia...
O desenho é feito não em uma única cabeça
exausta, nem em uma prancheta, mas sim em ultra-computadores
com moderníssimos CAD, que geram imagens tridimensionais
animadas, que podem ser rotacionadas e observadas sob todos
os ângulos possíveis.
No fim, com tudo isso, os suportes para
as panelas acabam ficando assim:

Um
design arrojado, atual, sofisticado... realmente o máximo...
próprio para pessoas com estilo, que sabem o que é
bom...
Mas há um porém: ele não
serve para apoiar panelas.
Ao contrário daquele desenho do
velho ferreiro, este não oferece apoio contínuo
ao longo de quatro direções. Ele deixa pontos
instáveis à frente e atrás, e, assim, se
uma panela média for colocada sobre ele, com o cabo virado
para frente ou para trás, ela tomba sozinha. Sei bem
disso porque esse é o fogão que tenho em casa.
Mas os problemas não param aí.
Além da perigosa armadilha das panelas que tombam sozinhas,
esse prodígio moderno tem um sistema de prateleiras no
forno (do tipo que vem para a frente quando a porta abre) que
fica inclinado uns 10 graus, fazendo com que os bolos queimem
de um lado e fiquem crus do outro!
Em resumo: a sofisticada equipe de profissionais
criou um fogão que não serve nem para cozinhar
nem para assar!
Surpreendente?
Nem tanto. Na verdade, o caso do fogão
é apenas a ponta do iceberg. Atrás dele está
o mais grave problema do mundo moderno: a imbecilização
de todos nós.
Antigamente, o ferreiro não imaginava
que acima dele existisse alguém ou algo cuidando do rumo
das coisas. Ele próprio tinha que pensar e decidir cada
detalhe do fogão, e sabia que, se não o fizesse,
ninguém faria. Ele era dedicado à sua atividade
tanto quanto os animais na natureza são dedicados às
deles.
Mas se pegarmos um animal e o prendermos
em uma jaula - onde ele não precise caçar, nem
fugir dos perigos - a dedicação e o interesse
acabam. Esse é o homem moderno. Um ser aprisionado, cujas
principais responsabilidades e decisões estão
nas mãos de outros: o Estado, a empresa, a mídia...
Estes o tratam como um eterno moleque em uma eterna escola;
e ele acaba se tornando exatamente isso.
Roubaram do homem o atributo mais precioso
que a natureza lhe deu: a responsabilidade por sua própria
vida. Tiraram o projeto do fogão de sua mente, e o colocaram
em um CAD. Substituíram a maravilhosa criatividade de
suas mãos por gestos maquinais em uma linha industrial.
E o que restou? Dúzias de especialistas para cada minúcia
do fogão (e da vida), e nenhum ferreiro que compreenda
o fogão (ou a vida) por inteiro.
Este artigo é o primeiro de uma
série sobre a modernidade. Através deles, tentarei
mostrar como - além de estarmos perdendo nossa dignidade
natural - estamos nos trancafiando em um zoológico que
não funciona! ... mostrar que a era das trevas... é
agora.
PS: Se alguém souber de um bom
ferreiro, por favor me avise.
André Carlos Salzano Masini